segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Reencontro com o Prof. Thomas Kesselring

Por Régis Antônio Coimbra*

Prof. Celso Marques, do Colégio de Aplicação, Prof. Thomas
Kesselring, da Universidade de Berna (Suiça) e Régis Antônio
Coimbra, Vice-Presidente do DCE Livre da UFRGS
Em 10 de agosto de 2012 (ontem, de minha perspectiva ao escrever, "agora"), tive a feliz oportunidade de reencontrar o prof. Thomas Kesselring palestrando sobre ética e economia, na sala 4 da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde estudei a partir de 2002 e me formei em janeiro de 2007. Eu fora aluno de Thomas há bem mais tempo, nos dois primeiros anos de minha Licenciatura em Filosofia, na mesma Universidade. Comecei esse curso em 1988, já no primeiro semestre cursando Filosofia Política com Thomas, então professor convidado ou algo assim.

Gostava de Thomas por ele se expressar de modo pausado e direto. Num primeiro momento pensei que fosse a dificuldade com a língua portuguesa, mas pude verificar que ele se expressa assim em outras línguas que supostamente lhe são mais familiares. Em certa medida eu o "persegui" na graduação em Filosofia e certa vez, ante meus trabalhos manuscritos com eventualmente mais de 50 páginas não muito bem concatenadas ele disse "Régis, teus trabalhos são muito longos e eu não posso me comprometer com todos os alunos de ler trabalhos assim, então tu faz teus próximos trabalhos só com 30 páginas..." Ele pensou um pouco no que havia dito e fez outra proposta: "...melhor: tu podes escrever quantas páginas quiseres, mas eu me comprometo a ler só as primeiras 30 páginas..."

Essa preocupação com peculiar interpretação da universalização de máximas reiterou-se nesse recente reencontro quando, já ao fim da conferência, ele comentou que sua viagem envolveu tantas toneladas de carbono adicionais na atmosfera o que não é universalizável, isso é, se todos ficarem viajando assim pelo globo, é muito carbono na atmosfera... Não tive tempo de avaliar o quão séria é tal preocupação e devo ressaltar que o professor é muito sutilmente brincalhão.

A palestra consistiu em em duas partes. A primeira foi um conjunto de de breves pinceladas (era engraçado como ele começava um assunto e lá pelas tantas observava que não queria se aprofundar nisso ou naquilo...) sobre: (1) a questão da ética aristotélica, uma ética no sentido da formação do caráter e de disposições a agir de modos socialmente valorizados e assim algo reciprocamente convenientes para vidas boas ou não muito ruins; (2) a questão dos sentimentos morais da abordagem de Adam Smith e Hume; (3) uma referência não muito clara (e no meu entender um tanto equívoca) sobre a ética de Kant e seu critério da universabilidade de uma máxima de ação; uma crítica feliz sobre a questão dos conflitos morais e uma também feliz interpretação da falha de Kant em entender a pertinência da mentira em certos contextos de conflito, ressalvando a validade da exigência da verdade em contextos claros ou não conflituosos... (4) um relato sobre a dificuldade em se pretender ensinar virtudes na Europa pelo uso hipócrita ou exibicionista da palavra "Tugend" (virtude) desde a segunda metade do século XIX; (5) uma análise da "regra de ouro" (trata ou próximo como queres que ele te trate, que serviu já de ponte para a segunda parte da conferência.

A segunda parte caracterizou-se por uma pertinente mas sempre difícil e perigosa abordagem de questões concretas contemporâneas, com ênfase na questão da capacidade do mercado de se auto-regular. Após uma discussão geral sobre a "regra de ouro", o prof. Thomas introduziu as questões sobre o mercado com o experimento mental no qual a regra de ouro colapsaria a instituição da pechincha. Questionei que o equilíbrio entre a oferta e a demanda ocorreria quase do mesmo modo (apenas invertida), dada a forma como ele formulara a regra de ouro na pechincha (grosso modo, uma inversão dos papéis); ele disse que obviamente não chegaria a um equilíbrio e o argumento dele ficou a princípio nisso. Depois ele deu outro exemplo, melhor formulado, do colapso da instituição da corrida na olimpíada, já que o que estivesse correndo diminuiria o passo para que os demais o alcançassem e assim por diante, de modo que todos chegassem empatados. Nesse ponto concordei e ele argumentou que a regra de ouro não funciona em situações de legítima concorrência mas sim nas de cooperação. No caso das competições, a regra de ouro funciona no sentido de todos respeitarem as regras de modo que os demais também as respeitem.

Na sequência o prof. Thomas comentou que não entende os neoliberais, os quais sugerem que o mercado é capaz de se auto-regular, e citou as crises mais ou menos recentes como provas de que os mercados não se conseguem regular, fazendo uma descrição algo simplória do que ocorreu, criticando o esforço de governos no sentido de salvar bancos e outros esboços de críticas dispersas como essas.

Passou-se então para a discussão dos membros da mesa e o representante da Escola Superior do Ministério Público começou dizendo que estava na mesa mais por representar a instituição que promovia o curso de especialização em Ética e Direito (ou algo assim) do que por conhecimentos ou capacidade de formular questões para o professor, no que eu me ofereci para o substituir e ele disse que assim que ele concluísse o protocolo que eu ficasse à vontade. Em outros momentos o próprio prof. Thomas fez algumas questões provavelmente retóricas que eu optei por entender e responder como perguntas diretas.

Após essas formalidades eu pedi para me manifestar e critiquei a descrição do prof. Thomas como muito simplificada e injusta e observei que só os anarco-capitalistas entre os neoliberais defendiam a total desnecessidade do estado e que não só não liam a parte dos sentimentos morais de Smith como mesmo não liam com atenção o como que estudo de caso feito por Smith do monopólio cristalizado por ação do estado. Observei que outros estudiosos posteriores a Smith exploraram melhor a questão observando que as alegadas falhas de mercado até ocorrem, mas de modo minudente e só se tornam grandes problemas pela influência do estado, o único capaz de dar estabilidade aos monopólios e cartéis. Contra-argumentei que as crises recentes não eram decorrentes só ou simplesmente de falhas de mercado em se auto-regular, sendo no meu entender uma complexa combinação onde, sim, os mercados tem limitações de auto-regulação mas os estados não só não os regularam como promoveram, mediante manipulação do câmbio (assumidamente mantido artificialmente baixo durante quase 20 anos por Greenspan), bem como o próprio estado americano como que "garantia" créditos imobiliários duvidosos, o que acabou levando à "bolha" especulativa imobiliária que estourou em 2008.

Observei ainda que a explicação do fenômeno em grande medida eu encontrei no livro de Barry Eichengreen, "A globalização do capital", no qual esse autor argumenta que a partir de 1870 com o crescimento da participação das populações na sustentação via eleições dos governos, nos EUA e na Europa, esses não puderam mais deixar que os bancos centrais se fixassem estritamente na estabilidade da moeda, pois assim não se conseguiam mais reeleger ou eleger sucessores, de modo que passaram a cobrar dos bancos centrais que buscassem o crescimento e o pleno emprego, o que acabou na análise dos economistas da escola austríaca a potencializar o efeito e duração das crises. Segundo esses economistas, quando o estado tenta interferir na economia, por ser um jogador grande demais, ele distorce o sistema de preços livres e torna impossível seja para o governo, seja para os empresários, saber no que investir, levando a erros acumulados que culminam nos ciclos econômicos ou, como dizemos mais recentemente, nas bolhas especulativas. Observei que lá por 1936 venceu politicamente a tese de Keynes, da necessidade dos estados de interferir na economia para evitar os ciclos mas que até hoje é academicamente controverso se a solução keynesiana mais ajuda ou atrapalha, isso é, se adia e minimiza as crises ou, ao contrário, as perpetua ou intensifica.

O prof. Thomas concordou que o estado também pode falhar e observou que não fazia muito sentido, de fato, criticar os neoliberais (ele parece usar o termo para se referir a anarco-capitalistas radicais), pois muitos se "converteram" ante os últimos eventos e o problema é que se não tem um outro modelo satisfatório. A discussão ficou um pouco confusa com algumas manifestações (algo típicas) de outras pessoas do público. Um sugeriu que se discutisse primeiro o que é "ser humano" e perguntei se havia um real problema que justificasse tal "passo a trás" como ele caracterizou; ele me questionou se eu tinha um conceito de humano e eu observei que não via nisso um problema já que, a princípio, não havia uma dúvida sobre quem incluir, que seria o caso se houvesse índios ou papeleiros que não estivessem sendo considerados adequadamente como humanos mas que, grosso modo não havia dúvidas sobre cada um de "nós" ser um ser humano e que determinada cadeira não é... Outro comentou que na cultura de seus ancestrais, indígenas não sei quais, tudo é humano e questionei se não seria tudo "digno" ou "sagrado"... mas o clima era mais no sentido de levantar problemas entre absurdos e exagerados. Ah... outro fez uma manifestação sobre seus sentimentos e exortou às revoluções individuais ou internas... ou pessoais, ou algo assim.

Também se iniciou alguma crítica ao lucro e observei que era espantoso como se continuavam discussões nesse sentido, calcadas num desamparo até compreensível em Marx, mas nem tanto após a solução de Bohm-Bawerk. Isso é, a busca do lucro não é mais do que a necessária remuneração do capitalista, que em parte pode ser cada um de nós mediante fundos de previdência ou aposentadoria, e dos empresários que buscam encontrar quem quer vender e quem quer comprar. Talvez os lucros devam ser diminuídos (e na verdade os lucros há muito tem sido diminuídos em relação às operações. Foram feitas algumas manifestações do tipo "está tudo pior" ou "nunca melhora" e observei que é ao contrário e exemplifiquei com o contraste do final da década de 1980, quando Thomas partiu de volta para a Europa e hoje...

Também se falou da necessidade de uma vida mais sustentável, não calcada no crescimento etc e observei que no médio prazo isso tendia a ocorrer até por um aumento dos custos de crescimento e que uma mudança abrupta provavelmente implicaria na morte em pouco tempo de um ou dois bilhões de pessoas, pois a comida não chegaria nas cidades, não adiantaria as pessoas saírem das cidades de volta ao campo e o que funciona bem com problemas simplesmente deixaria de funcionar sem que algo que supostamente funcionasse melhor passasse a funcionar sem que antes muitos morressem.

Também se discutiu sobre a solução cooperativa e observei que muitas discussões se resolvem via esclarecimento mas que quando isso falha as questões se resolvem pela força. Discutiu-se o monopólio da violência pelo estado e observei que a força influi também no domínio do estado, que não é um domínio "só" racional. Observei que o que chamamos de razão, quando a contrapomos às paixões, segundo Hume, geralmente são também paixões ou sentimentos mais "calmos" que não identificamos como paixão e supomos ser "razão" e que, nesse sentido, é possível uma naturalização de boa parte do que chamamos de "razão"; em especial, observei que em impasses entre um "capitalista" querendo explorar um terreno e um índio ou ativista dizendo que o terreno tal (ou todos...) é sagrado se resolve pela força, pela violência. O prof. Thomas observara que as culturas são respostas adaptativas a certos desafios econômicos e explorei algo maldosamente o argumento observando que historicamente somos descendentes e tributários de uma cultura que dizimou os índios e que nossa discussão era garantida por alguns massacres dos que se opunham ao interesse dos capitalistas.

O prof. Thomas observou que se eu queria defender de modo radical uma teoria da solução pela força eu entrava em contradição (performativa, presumo) já que estava tentando argumentar... mas objetei que isso valeria se eu dissesse que só pela força se resolvem as questões, e eu reconhecia que muitas vezes numa discussão se chegam a acordos e mesmo a um convencimento, na linha "quem sabe não seria melhor se explorarmos isso assim e assado..." mas, claro, que se houver impasse, vence quem tem mais força e o fato de o estado por meio de um sistema de "legitimação" disfarçar o uso da força não deixa de resolver o impasse "na porrada", vencendo não quem tem razão mas quem tem mais força (maiores números, melhor publicidade, melhores armas etc).

Observei, ainda, que embora não haja um critério objetivo para determinarmos que um ser humano tem maior valor do que uma barata (em algum momento isso foi aventado...), tendemos a empatizar mais com um ser humano do que com uma barata e, assim, entre salvar uma barata e um ser humano num incêndio, geralmente optamos pelo ser humano... Não se trata nesse caso de razões mas de interesses ou "paixões" mais ou menos calmas que tendemos a racionalizar.

Observei, ainda, que um outro problema que me parecia relevante era o de que alguns dos sentimentos morais que se desenvolveram durante a evolução biológica da espécie humana e receberam diferentes como que recepções, amplificações ou focalizações pelas diferentes culturas em parte não dão conta da complexidade das sociedades contemporâneas, com muitos fenômenos de massa, e observei que Weber tinha sua distinção de certo interessante para analisar o problema da ética das convicções, relativas à vida privada ou de pequenos grupos, num âmbito relativamente privado, e a ética da responsabilidade, relativa ao governo de grandes massas, num âmbito mais público ou político.

Assim várias discussões foram levantadas de modo muito elementar e mesmo ingênuo e não tive constrangimento de me contrapor a cada uma. Talvez não tenha ficado claro o objetivo do prof. Thomas ou seu objetivo não fosse intrinsecamente claro. Talvez a pretensão feliz do prof. de discutir questões práticas ou mesmo concretas tenha esbarrado na falta de conhecimentos do prof. dos assuntos práticos ou concretos que pretendeu discutir, ou à exiguidade de tempo para os tratar apenas com os esboços de ferramentas trazidos por ele na primeira parte da conferência.

Seja como for, embora não tenha sido um grande desafio intelectual, foi muito divertido reencontrar o prof. Thomas. Também estava presente o prof. Celso Marques, que foi o titular da turma do Colégio de Aplicação com a qual fiz meu estágio na Licenciatura em Filosofia. O prof. Celso é muito ligado à questões ecológicas e após a conferência discutimos um pouco sobre e outros assuntos. Aproveitei e pedi para tirar uma foto com os dois professores. Meu plano era ficar no meio dos dois, mas o prof. Celso preferiu colocar o prof. Thomas no centro (ou ficar ao lado dele, hehe).

*RÉGIS ANTÔNIO COIMBRA é filósofo e advogado formado pela UFRGS. Especialista em Direito e Economia e, atualmente, é Acadêmico da Licenciatura em Dança pela UFRGS.

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