domingo, 8 de junho de 2014

Ser conservador não é “conservar” tudo como está


Quando Ferdinand de Saussure criou a linguística, partiu de um pressuposto quase autoevidente: o signo é arbitrário, ou seja, a palavra “mesa” não tem nada a ver com o objeto “mesa”. Se é uma obviedade e poucos seriam capazes de confundir nomes com coisas concretas, no terreno das abstrações seu pensamento ainda precisa ser melhor compreendido. Defender que pobres tenham casas de concreto não é o mesmo que concretismo, sugerir que prédios tenham estrutura rígida não é estruturalismo.

No terreno político, com paixões e ideologias rivais terçando armas pelo espaço do outro, a confusão se torna perniciosa. Num país em que a esquerda hoje é praticamente hegemônica, alguns discutem o que querem os tais “conservadores”, mas não perguntando às suas obras: tentam extrair o sentido de sua filosofia do próprio nome que deram a ela.

Formulada modernamente por Edmund Burke, a política conservadora remonta a Montesquieu, Cícero e à Bíblia, passa por escritores como Coleridge, Maistre, Hawthorne e Conrad, é o cerne do cuidado econômico de Mises e Sowell, é advogada por historiadores como Guizot e Johnson, é a filosofia de Voegelin e Scruton, é a resistência antitotalitária de Soljenitsyn ou Leddihn, a verve da sátira de Mencken, Kraus e Muggeridge, é o norte de estadistas admiradíssimos como Lech Walesa, Václav Havel, George Washington, Lincoln, Roosevelt, Piñera ou Merkel.

Foi brilhantemente definida por Russell Kirk como a política da prudência, relembrando Aristóteles: o cuidado com a coisa pública, a aversão à centralização de poder em prol de “bens maiores”, a desconfiança de soluções fáceis e “reformas sociais” irreversíveis e de consequências imprevistas.

Essa filosofia política não tem um Das Kapital para chamar de seu, sendo quase um descrédito na política – e quem é menos confiável no mundo do que um político?

Historicamente, o termo escolhido no calor da Revolução Francesa (que matou 40 mil em um ano) foi “conservador”, atentando a uma de diversas características desse pensamento. Poderia ser “moralizantismo”, ou “ceticismo político”.

O problema não é nem desconhecer uma filosofia ainda alheia ao país – o nefasto é acreditar que se pode descobrir o que é o conservadorismo apenas pelo expediente pedestre de se afirmar “conservador é quem conserva”. O desconhecimento de uma filosofia política é tratado como prova de que ela não existe além de uma conclusão apressada – o famoso ad ignorantiam dos retóricos.

Essa visão de que existe uma filosofia de esquerda e todos os conservadores são apenas ignorantes que querem manter tudo como está geraria efeitos bizarros se fosse levada a sério: um conservador que subisse ao poder após um revolucionário deveria deixar tudo como está, querendo sempre manter o tempo presente intacto – qualquer presente.

Assim se supõe que o conservador é ruim por querer manter intactas todas as injustiças atuais – quando é preciso mudar muito mais a política sendo de direita do que mantendo o estatismo inchado, o coitadismo penal, o Estado assistencialista centralizador, intervencionista e gastador do Brasil.

É óbvio que ser conservador é algo incrivelmente mais complexo do que supõe a esquerda – e ainda mais óbvio que não é possível compreender tal filosofia apenas através do que seus inimigos afirmam que ela é.


*FLÁVIO MORGENSTERN é analista político, especialista do Instituto Millenium e colaborador do site www.implicante.org.

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